SABERES ANDANTES Paulo Freire. Educar para la libertad y esperanza Número Especial
Educação Popular que constrói desenvolvimento
Andréa Alice da Cunha-Faria 5
Universidad Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) andalicecf@gmail.com
Artículo recibido en abril y aprobado en agosto 2022
Resumo
Esta exposição sustenta a tese de que há, no Brasil, um projeto de desenvolvimento que vem sendo historicamente instituído pela Educação Popular. Este projeto nasce no campo, mas a ele não se limita, aglutinando-se, na atualidade, em torno do conceito de Agroecologia. Tomando como referência a pesquisa de doutorado desenvolvida pela autora, a exposição inicia tecendo considerações acerca da natureza do pensamento de Paulo Freire para, em seguida, discutir o postulado de que “há um projeto de desenvolvimento na Educação Popular”. Para tanto, recorre especialmente à tese defendida por Freire, no ano de 1959, em busca dos nexos entre o político e o pedagógico na Educação Popular e, com esta “chave de leitura”, busca fundamentar a tese sustentada nesta exposição.
Palabras clave: Educação Popular. Agroecologia. Desenvolvimento. Participação. Brasil
5 Licenciada en Ingeniería Agronómica por la Universidad Federal Rural de Río de Janeiro (1986). Magister en Extensión Rural de la Universidad Federal de Viçosa (1999). Doctora en Educación de la Universidad Federal de Paraíba (2017). Comenzó su trabajo profesional como agrónoma con los movimientos sociales del campo acercándose al “quehacer” de la Educación Popular. Se ha desempeñado como consultora autónoma con varios proyectos de desarrollo local, particularmente con enfoques participativos de diagnóstico, planificación y monitoreo. Desde 2008 es profesora en el Departamento de Educación de la Universidad Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Ha investigado la relación histórica entre Agroecología y Educación Popular, produciendo una historiografía del movimiento agroecológico brasileño.
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Educación Popular que construye desarrollo
Resumen
La presente exposición apoya la tesis de que existe, en Brasil, un proyecto de desarrollo instituido históricamente por la Educación Popular. Este proyecto nace en el campo, pero no se limita al mismo, aglutinándose, actualmente, en torno al concepto de Agroecología. Tomando como referencia la investigación doctoral desarrollada por la autora, la exposición comienza con consideraciones sobre la naturaleza del pensamiento de Paulo Freire y luego discute el postulado de que “hay un proyecto de desarrollo en la Educación Popular”. Para ello, recurre especialmente a la tesis de Freire de 1959 en busca del nexo entre lo político y lo pedagógico en la Educación Popular y, con esta “clave de lectura”, busca fundamentar la tesis sostenida en esta exposición.
Palabras clave: Educación Popular. Agroecología. Desarrollo. Participación. Brasil
Popular Education that builds development
Abstract
This paper supports the thesis that there is, in Brazil, a development project that has been historically instituted by Popular Education. This project is born in the countryside, but is not limited to it, and is currently concentrated around the concept of Agroecology. Taking the doctoral research developed by the author as a reference, the paper begins with considerations about the nature of Paulo Freire’s thought and then discusses the postulate that “there is a development project in Popular Education”. To do so, it resorts especially to the thesis defended by Freire, in 1959, in search of the nexus between the political and the pedagogical in Popular Education and, with this “reading key”, it seeks to substantiate the thesis sustained in this exposition.
Keywords:PopularEducation.Agroecology.Development. Participation. Brazil
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Introdução
Na segunda década do século XXI, contexto no qual nos encontramos, vivenciamos um momento histórico sem precedentes, no qual os rumos do desenvolvimento encontram-se “em cheque”. Seja pelos crescentes casos de desequilíbrio ambiental, fruto de seu caráter exploratório, seja pela intensificação das desigualdades sociais, fruto de sua dinâmica concentradora, ou seja pelas ameaças sanitárias, a exemplo da pandemia de Covid-19 que seguem desafiando nossa capacidade explicativa. Fato é que os modelos de desenvolvimento projetados e assumidos pelos países “não entregaram aquilo que prometeram”.
Diante deste contexto, é uma honra ter a oportunidade de refletir, com “hermanos” latino-americanos acerca da relação entre educação e desenvolvimento, a partir da perspectiva da Educação Popular. Agradeço à comissão organizadora e ao comitê científico deste congresso, especialmente na pessoa de Vicent Palop, um amigo que fiz quando este esteve no Brasil, por ocasião de seu estágio pré doutoral (estancia predoctoral).
Na ocasião, eu estava desenvolvendo a pesquisa que deu base a minha tese de doutorado e eu fico particularmente feliz pelo convite para estar aqui hoje relacionar-se justamente às reflexões desenvolvidas nesta tese. Eu também fiquei particularmente motivada quando encontrei, dentre os objetivos deste congresso, o de promover alianças estratégicas para a articulação de redes de pesquisa científicas. Penso que as temáticas que relacionam educação e desenvolvimento, a partir da perspectiva da Educação Popular, têm muito a contribuir para os desafios de nossa atualidade, especialmente, no contexto latino-americano.
As reflexões que se seguem encontram-se estruturadas da seguinte forma: (1) Em primeiro lugar, nos dedicaremos brevemente, a tecer algumas considerações acerca da natureza do pensamento de Paulo Freire, a fim de demarcar os fundamentos de nossas reflexões. (2) Em seguida, trabalharemos o postulado de que “Há um projeto de desenvolvimento na Educação Popular”. Neste momento, partilharemos com vocês, o primeiro movimento de nossa pesquisa de doutorado que consistiu em uma busca pela ontologia das formulações freireanas. Para
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tanto, optamos por realizar um movimento que foi “do contexto ao texto”, o que nos levou à realidade brasileira e latino-americana dos anos 1950 e, especialmente, à tese defendida por Paulo Freire, no ano de 1959, intitulada “Educação e Atualidade Brasileira”, a qual faremos referência em diversos momentos desta exposição. (3) Por fim, nos deteremos a analisar, em linhas gerais, o processo de construção de um projeto de desenvolvimento no Brasil chamado hoje, de Agroecologia. A nossa tese é a de que este projeto de desenvolvimento vem sendo instituído pela Educação Popular e especialmente, pelas formulações freireanas.
Antes de prosseguirmos, cabe ainda, uma rápida reflexão acerca deste documento histórico que é a tese de Paulo Freire, defendida no ano de 1959 e publicada apenas em 2001, mais de 40 anos depois. Trata-se da tese apresentada por ele, emconcurso público para professor de História e Filosofia da Escola de Belas Artes de Pernambuco, atual Universidade Federal de Pernambuco. O grande lapso de tempo entre a defesa e a publicação deste material se deve ao fato de Paulo Freire ter condicionado a ampla divulgação de sua tese à elaboração de uma descrição do contexto da época, o que foi primorosamente realizado por José Eustáquio Romão, acrescido pelos depoimentos de Paulo Rosas e Cristina Heringer Freire.
A obra, ainda pouco conhecida, é de grande valia na busca pela ontologia das formulações freireanas pois, conforme José Eustáquio Romão anuncia em seu prefácio “[...] foi no pós-guerra que se deu a gênese e a formação das fontes inspiradoras dos princípios, dos fundamentos e das categorias fundantes do pensamento de Paulo Freire” (Romão, 2003, p. XIII).
No primeiro movimento de nossa pesquisa de doutorado, o que buscamos mais especificamente neste material, foram os nexos entre o político e o pedagógico das formulações freireanas. Fizemos isso cotejando tais formulações com o contexto da época e as formulações de pensadores contemporâneos, especialmente aqueles ligados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) que à época, se consistia em um importante espaço de debate da intelectualidade brasileira.
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Após a construção de uma “chave de leitura” que, aos nossos olhos, reflete os nexos entre o político e o pedagógico das formulações freireanas, a utilizamos para interpretar o processo histórico de constituição da Agroecologia no Brasil, produzindo a tese intitulada “A Educação que constrói a Agroecologia no Brasil” e que aqui teremos mais a frente, o prazer de compartilhar.
A Natureza do pensamento de Paulo Freire
A ideia corrente de que “minha cabeça pensa onde meus pés pisam” expressa muito bem a natureza do pensamento de Paulo Freire. Isto porque trata-se de um pensamento sempre situado, no espaço e no tempo, ou seja, um pensamento sempre construído em interação com o vivido, a partir e através da reflexão acerca do vivido .
Esta perspectiva é assumida pelo autor desde sua primeira experiência educativa, no Serviço Social das Indústrias (SESI), ainda na década de 1950, experiência que ele toma como referência para a formulação de sua tese intitulada “Educação e Atualidade Brasileira”.
Justamente por tratar-se de um pensamento situado, construído eminteração como vivido, constitui-se comoumpensamento atemporal e universal. Por que?, poderíamos nos perguntar. Porque em síntese, trata-se de uma perspectiva, de uma “mirada” sobre o ser e o estar no mundo. E por ser esta, uma reflexão de caráter existencial, torna-se dialeticamente, atemporal e universal.
As palavras de Freire não nos deixam dúvidas quanto a sua perspectiva. Diz ele: “Tornemo-nos mais claros. A possibilidade humana de existir (forma acrescida de ser), mais do que viver, faz do homem um ser eminentemente relacional. Estando nele, pode também sair dele. Projetar-se. Discernir. Conhecer” (Freire, 2003, p. 10)
Um ser que ao reconhecer-se relacional, torna-se capaz de projetar a si próprio, capaz de compreender a si e ao mundo e, através do movimento de conhecer, esclarecer a si mesmo. É daí e somente daí que emerge, para Freire, a possibilidade humana de transformação do mundo: a partir da transformação de si mesmo.
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É fundamentado por esta perspectiva que Freire trabalha os conceitos de incompletude e inacabamento do ser humano e reafirma a noção de História como possibilidade. A professora Ângela Antunes, estudiosa do pensamento freireano, faz referência em sua tese de doutorado a uma formulação do professor Luiz Carlos de Menezes, por ocasião de seu exame de qualificação, que vale a pena ser observada, a fim de esclarecer os conceitos de incompletude e inacabamento em Freire. Disse ele:
Somos incompletos e inacabados. São duas coisas diferentes; não são sinônimos. Nós somos incompletos porque sem o outro não existimos. Não há sentido em pensar “eu e o mundo”. É preciso pensar “eu como um pedaço do mundo”. Esse caráter relacional do ser humano; essa é a grande percepção do humanismo do Paulo Freire. Nisso consiste a incompletude. E inacabado não significa a mesma coisa. Inacabado quer dizer “eu sou o movimento de estar sendo”, eu não sou alguma coisa que se completou (Antunes, 2002, p. 66).
Opostulado de que “Há umprojeto de desenvolvimento na Educação Popular”
Feitas essas considerações iniciais sobre a natureza do pensamento de Paulo Freire, podemos seguir para nossa segunda sessão, destinada à reflexão acerca do postulado de que “Há um projeto de desenvolvimento na Educação Popular”. Para tanto, conforme já anunciado, convidamos a todos para uma retrospectiva histórica, mais especificamente, para um deslocamento até o contexto latino- americano da década de 1950, cenário no qual Paulo Freire desenvolveu suas primeiras formulações.
Comoé de conhecimento geral, o contexto era de fim da segunda Guerra Mundial e de início da Guerra Fria, com a intensificação da polarização entre Estados Unidos e União Soviética e da disputa no campo das ideias. Para nós, latino-americanos, a repercussão deste momento histórico significou a incidência de novas estratégias, cada vez mais elaboradas, de colonização .
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Nos anos que se seguiram, nos espaços em que foram possíveis, osmúltiplos efeitos docolonialismo sobreospaíses passaramase constituir temática recorrente de acalorados debates. Aos olhos de Paulo Freire e daqueles que coadunavam com uma perspectiva humanista, os efeitos do colonialismo estavam para muito além da dependência econômica.
Segundo Álvaro Vieira Pinto, um dos pensadores vinculados ao ISEB, cujas ideias incidiram fortemente sobre as formulações freireanas, o colonialismo produz “uma compreensão de nós mesmos, produzida a partir de ângulos parciais” (Vieira Pinto, 1960, p.13), pois formulada com base em parâmetros exógenos, fundamentados em outros padrões culturais e, portanto, por estes, limitada. Seu pensamento vigoroso chamava a atenção para a ausência de autenticidade decorrente da condição de colonizado, o que levava à alienação do sujeito em relação a sua própria realidade.
Interessante frisar que Vieira Pinto, não está se referindo apenas ao “povo” ou às “massas”. Ele se dirige especialmente à nascente intelectualidade brasileira que estaria, segundo ele, se constituindo também de forma colonizada. De forma bastante clara e incisiva, alerta para os riscos decorrentes da ausência de um “pensamento filosófico”, ou seja, do “ponto de vista do infinito”, interpretado por Vieira Pinto como aquele instrumento conceitual que permitiria ao sujeito “[...] transcender o plano em que se situava e ultrapassar o finitismo de sua visão” (Vieira Pinto, 1960, p.13).
A aproximação ao conceito de inédito viável formulado por Freire é bastante evidente. Inédito viável como possibilidade ainda inédita da ação, ou seja, o futuro a construir a partir da sua projeção como visão, como sonho, como desejo.
EmdiálogocomVieiraPintoeoutrospensadores contemporâneos a ele, Paulo Freire segue, em sua tese, apontando outros efeitos do colonialismo, particularmente sobre o ser humano, com destaque para o mutismo social, ou seja, o silenciamento, o emudecimento de uma Nação que por não perceber a si, não pode se expressar. Decorre daí a passividade de uma população que se encontra alienada, ou seja, apartada de sua própria cultura e, portanto, inautêntica .
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De forma bem explícita, ele afirma que “Quanto mais deixemos o nosso homem mudo e quieto, fora do ritmo de nosso desenvolvimento a que se liga estreitamente a nossa democratização, tanto mais obstaculizaremos o [próprio] desenvolvimento e a democratização” (Freire, 2003, p.17). Isto porque, nos alerta Freire, a falta de compreensão e de consciência do processo em curso gera, na população, a incapacidade de dar ao próprio processo, sentido e direção, comprometendo assim, a sua realização. E é então que ele anuncia que:
Um dos aspectos mais importantes do nosso agir educativo, na fase atual de nossa história será, sem dúvida, o de trabalhar no sentido de formar, no homem brasileiro, um especial senso, que chamamos de senso de perspectiva histórica. Quanto mais se desenvolva esse senso, tanto mais crescerá no homem nacional o significado de sua inserção no processo de que se sentirá , então, participante, e não mero espectador (grifos nossos) (Freire, 2003, p.20).
Para Freire, este senso de perspectiva histórica resulta só e somente só da “claridade das consciências” (Freire, 2003, p.20), não de um processo de conscientização “de fora para dentro”, como uma doação, mas como fruto de um processo ativo de transição de um estágio de consciência ingênua a um estágio de consciência crítica, ou seja, aprofundada, acerca de si e do mundo. Para ele, somente esta “claridade das consciências” levaria os sujeitos a uma “adesão pelo esclarecimento” (Freire, 2003, p.23), resultando em uma efetiva adesão ao processo de desenvolvimento e de democratização necessários ao país.
Em suas palavras: “A questão se faz clara. Não está, realmente, em que as classes dirigentes, superpostas ao povo, lhe apresentem e lhe imponham a solução de seus problemas. Solução pensada por elas, distanciadas do povo. É preciso que ele cresça na interferência dessa solução” (Freire, 2003, p.22).
“Crescer na interferência dessa solução” significa colocar-se “em situação”, deixar-se envolver com a realidade vivida, instigarse
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pela problemática e dedicar-se à busca de soluções. Soluções que não existem antes da reflexão sobre a realidade. Soluções que surgem do diálogo com esta situação. Diálogo que nos permite ir “[...] conhecendo progressivamente a realidade. Realidade em análise, em discussão. Posta em evidência. Nunca previamente estabelecida por nós, a nosso gosto ou nossa conveniência” (Freire, 2003, p. 23).
É a partir desta compreensão que ele advoga por uma educação capaz de “ajudá-lo a ajudar-se, promove-lo agente de sua própria superação” (Freire, 2003, p.17) e se refere a ela, em toda a sua tese como “uma educação para o desenvolvimento e a democracia”.
Tomandoessasconsideraçõescomoreferência, compreendemos já ser possível tecer algumas considerações acerca do nexo entre o político e o pedagógico nas formulações freireanas, de forma a fundamentar o postulado de que “há um projeto de desenvolvimento na Educação Popular”.
Conforme discutido até o presente momento, havia naquele contexto brasileiro e latino americano da década de 1950, forças políticas às quais se juntaram Freire e outros pensadores, que defendiam três princípios básicos para o desenvolvimento: (1) que ele fosse um desenvolvimento nacional, ou seja, que alavancasse um projeto de país, um projeto de Nação soberana, livre do colonialismo, (2) que fosse um desenvolvimento democrático, com o povo e não, para o povo, não por “caridade”, mas pelas razões anteriormente trabalhadas, e (3) que tivesse por objetivo maior a Humanização do Sujeito e do Mundo.
Como corolário deste marco referencial, emerge uma proposta educacional, posteriormente identificada como Educação Popular, cujo nexo entre o político e o pedagógico pode ser explicitada nos seguintes termos: (1) se do ponto de vista político, o que se busca é o desenvolvimento nacional, torna-se necessário umprocesso pedagógico que tome a realidade como ponto de partida e de chegada. (2) se este desenvolvimentosepretendedemocrático, demanda-sea aprendizagem da dialogação, da capacidade e do exercício do diálogo com a realidade e com o outro. E, (3) se o objetivo maior do desenvolvimento é a humanização do sujeito para a humanização do mundo, necessário se
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faz uma pedagogia calcada por vivências e experiências que tenham o potencial de “envolver”, de “afetar” os Seres Humanos para que ele se perceba “agente de sua própria superação”.
Cabe destacar que esta potente formulação pedagógica coadunava, à época de sua gênese, com valores como autenticidade, cultura popular, saber popular, democracia, nacionalismo, humanismo, dentre outros. Todos eles, fortemente ameaçados pelos golpes militares da década de 1960 que geraram tiranias, assassinatos e o exílio de muitos daqueles pensadores e pensadoras, inclusive Paulo Freire, por quase 16 longos anos.
Enquanto isso, com o passar do tempo, aqueles e aquelas que conseguiram permanecer (vivos) em seus países vão se agregando em torno de grupos populares, muitas vezes ligados à Doutrina Social da Igreja e à Teologia da Libertação. E são nesses espaços que aqueles valores e aquela pedagogia encontram possibilidades de germinação e florescimento, produzindo resistências e construindo alternativas, alimentados por aquilo que meu orientador, professor Luiz Gonzaga Gonçalves chamou de “Arte de Pensar por Alternativas” (Gonçalves, 2013).
É neste cenário que podemos identificar a gênese do processo de construção de um projeto de desenvolvimento no Brasil, terceiro e último elemento de nossa reflexão.
Agroecologia no Brasil, projeto de desenvolvimento da Educação Popular
Iniciarmos esta sessão com a representação gráfica de uma historiografia do movimento agroecológico brasileiro, produzida através de nossa tese de doutorado, e sua subsequente descrição:
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Figura 1
Historiografia do Movimento Agroecológico Brasileiro

A figura 1 é uma espécie de “linha do tempo” e encontra-se demarcada por 3 períodos históricos: até meados da década de 1980, deste momento até meados da década de 1990 e a partir de então.
As linhas fazem uma analogia às nascentes de um rio que se intercruzam por volta de meados da década de 1980 e que se expandem a partir de meados da década de 1990, assim como acontece quando um rio chega a sua foz.
A linha vermelha refere-se a um conjunto de iniciativas em torno das Igrejas que se vincularam à Doutrina Social das Igrejas e à Teologia da Libertação. A linha verde refere-se a um conjunto de iniciativas, de profissionais e estudantes, no âmbito das academias, mais especificamente, das Ciências Agrárias e Ciências Sociais. E a linha azul refere-se à Cooperação Internacional, em sua maioria realizada entre organizações da sociedade civil, especialmente da Europa e da América Latina, muitas vezes, também vinculadas à ação das Igrejas.
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No primeiro tempo encontram-se os espaços de germinação , período caracterizado como um momento em que resistências se transmutam em alternativas. O segundo tempo, iniciado em meados dos anos 1980, com o início do processo de reabertura política e a volta dos exilados políticos, é palco de uma série de dinâmicas de interação e permitem a qualificação do que se chamava de Agricultura Alternativa, em torno do conceito de Agroecologia. E o terceiro tempo, que se inicia em meados da década de 1990 caracteriza-se por uma série de movimentos de expansão, afirmando a Agricultura Familiar como categoria social e constituindo a Agroecologia como um verdadeiro “plural articulado” (Rauber, 2003, p.58).
Nesta história, aqui contada em três tempos, procuramos investigar, na pesquisa de doutorado, se haveria um “fio condutor” e qual seria este. O que encontramos, através de consulta a fontes primárias e entrevistas com pessoas chave foi, principalmente:
- Uma práxis reflexiva, criativa e acima de tudo, ousada.
- Um processo de construção de “inéditos viáveis”, ou seja, de construção de sínteses inovadoras, não preexistente.
- Um processo movido mais por buscas, do que por certezas.
- Percursos intensamente vivenciados, replanejados, alterados pelo próprio caminhar.
- Um intenso diálogo com a realidade e com o outro, o que foi permitindo a incorporação de “novos sujeitos” e a constituição de um “plural articulado”.
- A realidade como ponto de partida e de chegada de processos educativos que têm como objetivo maior, a transformação social.
- A centralidade na promoção do Ser Humano em busca do “Ser Mais” e da Humanização do Mundo.
Ao buscarmos pelas raízes mais profundas deste “movimento”, as encontramos justamente nos espaços de germinação. Na figura de pessoas como Dom Hélder Câmara, no Movimento de Educação de Base (MEB), nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB), no Movimento
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de Cultura Popular (MCP), nos Centros Populares de Cultura (CPC), quer dizer, na Educação Popular. E, particularmente, nas formulações de Paulo Freire que, através da ação de diversos grupos populares, foram tecendo o fio condutor de um projeto de desenvolvimento (e de sociedade) que hoje se articula em torno do conceito de Agroecologia.
A pesquisa nos revelou que a Agroecologia no Brasil vem sendo construído por uma prática social. Uma prática que parte do rural, mas a ele não se restringe. Que se alimenta por processos de resistência e de construção; de denúncia e de anunciação. Uma prática política de afirmação dos setores populares da sociedade, na busca por melhor qualidade de vida para todos (é um projeto nacional), combatendo a exploração intensiva dos recursos humanos e naturais pelo capital (perspectiva contra hegemônica).
Aqueles valores anteriormente mencionados – autenticidade, cultura popular, saber popular, democracia, nacionalismo e humanismo – que constituem a episteme, ou seja, o “tecido” da Educação Popular, parecemfazer aponteentre projetos dedesenvolvimento temporalmente tão distanciados. E isso nos permite afirmar que há um projeto de desenvolvimento associado à Educação Popular que vai se revelando através da prática política e pedagógica de diversos segmentos sociais e que se materializa, no Brasil, em torno do processo de constituição da Agroecologia (Faria, 2017).
Conclusão
Ao nos aproximarmos do final desta exposição, cabe perguntar- nos sobre os sentidos e significados desta retrospectiva histórica. No meu entendimento, há pelo menos, três direções: (1) a afirmação de que há projetos contra hegemônicos de desenvolvimento, em construção (2) a constatação da potência político e pedagógica da Educação Popular na construção desses projetos, e (3) o reconhecimento de que a superação do colonialismo e seus efeitos permanece como um desafio atual dos mais relevantes.
Abordamos aqui a Agroecologia como um eixo agregador de um projeto contra hegemônico de desenvolvimento e assim, ela vem se
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revelando. No entanto, é necessário frisar que este não é o único eixo agregador que se nutre daqueles valores que constituem a episteme da Educação Popular, como autenticidade, cultura popular, saber popular, democracia, nacionalismo e humanismo, aqui já mencionados.
Conforme pretendemos demonstrar através desta retrospectiva histórica, foram estes os valores que inspiraram uma pedagogia que alimentou, ao mesmo tempo em que foi sendo alimentada, por inúmeros processos de resistência e de construção de alternativas. Todas eles trazem em si, uma busca, uma afirmação, um projeto. Sim, um projeto de sociedade, um projeto de Nação, um projeto de desenvolvimento.
Cabe, por fim e com pesar, reconhecer que apesar de todos esses esforços e de todas as potentes construções deles decorrentes, permanecemos nós, brasileiros e latino americanos, sob os efeitos perversos de um colonialismo que se reinventa a cada instante. Reconhecer esta condição nos parece fundamental para que possamos dar sentido e significado às nossas ações no campo da Educação Popular. Afinal, como nos mostra a História, foi a superação do colonialismo aquilo que motivou a formulação, nas palavras de Paulo Freire, de uma “educação para o desenvolvimento e a democracia”, posteriormente chamada “Educação Popular”.
Referências
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Faria, A. (2017). A educação que constrói a agroecologia no Brasil: trajetórias de um vínculo histórico. 204 f. [Tese Doutorado em Educação]. Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa/PB.
Freire, P. (2003). Educação e Atualidade Brasileira. 3ª ed. Cortez; Instituto Paulo Freire.
Gonçalves, L. (29 de setembro a 02 de outubro de 2013). A Educação de Jovens e Adultos e a Arte de Pensar por Alternativas. 36 Reunião
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Rauber, I. (2003). Movimientos sociales y representación política: articulaciones. Pasado y Presente Ediciones: CTA,. Disponível em: http://www.rebelion.org/docs/4518.pdf. Acesso em 25/07/2016.
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